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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Terrível Mundo das Certezas Absolutas

Quando o Oráculo disse que Sócrates era o homem mais sábio que existia, isto deu um nó na cabeça daquele homem. Ele era apenas um suboficial do exercito ateniense, que tinha estudado por um ano com o mestre Anaxágoras, mas infelizmente Anaxágoras tinha sido obrigado a sair de Atenas porque os outros mestres sofistas não gostavam da concorrência que ele representava junto aos ricos que buscavam bons mestres para instruir seus filhos; muitos até acham que foi por conta desta experiência de ver seu mestre escorraçado por seus concorrentes, que fez Sócrates desenvolver seus pensamentos sobre ética e virtude.

Mas este homem de origem humilde filho de uma parteira e um cortador de pedras era apresentado como o grande pensador grego, e isto dito pelo o Oráculo de Delfos, que era o oráculo mais respeitado de todo mundo antigo.

Além desta inquietante afirmação, Sócrates sabia que todo homem que ia a Delfos ao sair do Oráculo se deparava com a inscrição: "γνωρίζετε τον εαυτό σας", "Conhece a ti mesmo". Então ao tentar exercer este auto conhecimento ele se deparou com um dilema, como posso ser o mais sábio sendo que não sei quase nada? Foi então que nasceu nele a perspectiva de que "tudo que sei é que nada sei", apesar que Platão nos afirma que a frase não foi bem assim, mas não importa, a ideia é exatamente esta. Ele se deu conta de que o homem estúpido é o homem que pensa conhecer tudo, mas o homem sábio é aquele que reconhece que ignora muitas coisas e isto obviamente abre a possibilidade que ele venha a adquirir novos conhecimentos.

Sócrates então passou a ensinar aos seus alunos eles deveriam questionar a natureza daquilo que vemos e percebemos, para que possamos adquirir conhecimento, as certezas absolutas nos tornam absolutamente ignorantes. Logicamente ele desagradou os mesmos sofistas que ganhavam muito para dar aula aos filhos dos ricos, pois estes de arvoravam saber tudo sobre tudo. Na medida em que Sócrates questionava o conhecimento comum, questionou também os deuses gregos e os seus adversários aproveitaram para acusa-lo de blasfêmia e leva-lo para a prisão e depois a morte. 

Mas seu legado permaneceu em seus alunos, e o mais notável deles, Platão, deu prosseguimento a estas ideias, ensinando aos gregos que questionassem sempre as supostas realidades absolutas. Platão ensinou os gregos a fugir do lugar comum, a questionar a natureza dos conceitos e das coisas que vemos sentimos ou percebemos.

Assim nasceu o ocidente, assim nasceu o desenvolvimento humano. Aprendemos a questionar tudo, aprendemos a buscar a verdade, a buscar o conhecimento a partir do questionamento da compreensão dos fatos. Aprendemos a entender os eventos científicos a partir da análise do contraditório.

Curiosamente isto favoreceu o cristianismo, porque antes de surgir este cristianismo pragmático, das obrigações e dos dogmas, no início, era o cristianismo do Deus que se permite questionar. Pragmatismo e dogmatismo eram características das outras religiões, mas o Deus cristão era aquele que dizia "Provai e vê-de que o Senhor é bom!" Salmo 34 verso 8, ou mesmo "Fazei prova de mim" Malaquias 3 verso 10; ou ainda quando Paulo diz: "Examinai tudo e retende o que é bom" I Tess 5 verso 21. Todos exemplos de que os textos desde o Antigo testamento da tradição judaica, quanto os textos dos evangelhos, que nos apresentam a Jesus, descrevem um ser divino que se permite questionar, e na verdade Ele incentiva ser questionado, em diversos textos encontramos Jesus convocado para que as pessoas venham a Ele, como se dissesse aos mesmo, vocês tem o direito de duvidar, mas venham que vou lhes provar quem sou.

Neste contexto, aquilo que é dogma do cristianismo original era tratado não como dogma, mas como fé, isto é, acreditar naquilo que não se pode provar nem se pode ver, pelo menos por enquanto, não é dogma, é fé. E já era assim desde o Antigo Testamento, como quando disse Jó, "Eu sei que meu redentor vive" Jó 19 verso 25, e sim este é um conhecimento absoluto, mas que é apresentado como um ato de fé, não como um conhecimento empírico.

Então por isto o cristianismo cresceu tanto, porque assim que a mensagem saiu da Judeia e chegou aos gregos, estes que tinham aprendido de Platão a terem este olhar crítico, investigativo, e questionador, se depararam com uma fé que lhes incentivava a isto.

Mas então veio o pragmatismo, suas certezas absolutas, seu pensamento de massa, e passamos a viver o obscurantismo medieval. 

O triste é que Estamos voltando a isto, estamos voltando a idade das trevas, estamos cheios de certezas absolutas, e qualquer questionamento feito a ciência é inaceitável, mas isto é um absurdo porque na verdade a ciência é feita de questionamentos.

Estamos voltando ao tempo em que qualquer ideia diferente dos demais é inaceitável, mas isto é outra estupidez, pois a evolução se dá pelos diferentes e não pelos iguais. 

Mais do que nunca estamos cheios de certezas absolutas a respeito de nós mesmos e a respeito do mundo, isto porque não temos mais Sócrates que nos ensinem a pensar por nós mesmos, não somos mais ensinados a questionar nem o mundo nem a nós mesmos, somos apenas doutrinados a sermos meros replicadores daquilo que aprendemos, sem se quer questionamos se é de fato verdade. Não existe mais massa crítica, existe massa de manobra.

O pior é quando olhamos para fora do lugar comum, o que vemos é o ridículo, quase sempre o questionamento é levantado pelo conspiracionista ou pelo terraplanista, e quase não existe sensatez nas vozes que se levantam para questionar. Vou tentar dar um exemplo: Existe uma turma de conspiracionistas que dizem que as vacinas são sistemas de controle, e que não podemos dar vacinas em nossos filhos etc etc, estes atualmente comprem o papel de quem questiona o senso comum, mas fazem este questionamento dentro do ambito do ridículo, nem é um problema novo, em Novembro de 1904 houve no Rio de Janeiro uma revolta popular contra a vacinação contra a Varíola; pois bem hoje a maioria do pessoal que combate a vacinação costuma aparecer falando em conspirações planetáris com papeis laminados como chapéus sobre a cabeça. Mas será que realmente não poderia surgir um questionamento mais sério sobre se não existe uma forma mais eficaz de se fortalecer a imunidade da população?

No passado existia a certeza absoluta de que a Terra era o centro do universo, havia a certeza de que Átomo era indivisível, e até bem pouco tempo atrás havia a certeza de que o universo se expandia cada vez mais rápido, pois bem, estavam todos errados, e provou-se que estavam errados porque houve quem duvidasse e discordasse de forma sensata. O próprio Einstein acabou relevando que Newton não estava correto quando de forma muito inteligente propôs uma ideia diferente para o fenômeno da gravidade, sendo que ele era fã e admirador de Newton.

Outro fenômeno são as bolhas, porque eventualmente formam-se grupos que antagonizam suas opiniões, mas estes foram bolhas ondem vivem isolados em suas verdade, por exemplo, existem aqueles que acreditam em absolutamente tudo que é dito pela mídia, e existe também a bolha daqueles que desacreditam em absolutamente tudo que é dito pela mesma mídia, ambos grupos vivendo suas realidades paralelas dissociativas antagonizando-se em suas bolhas de certezas absolutas.

Interessante que esta é a época do mundo líquido descrita por Bauman, e como pode ser isto, o homem que vive em constantes mudanças, se torna cheio de tolas certezas absolutas?

Mas talvez seja exatamente este o problema, porque a Idade Média, onde era proibido questionar o mundo, a política ou a religião, foi antecedida pelo fim do Império Romano. Aparentemente o fim do sanguinário Império Romano deveria ser uma coisa boa, mas o povo que viveu tantas mudanças buscou as absurdas certezas daquele terrível sistema medieval. Talvez seja isso, um povo que vive constantes mudanças tecnológicas, vive um ambiente tão líquido, que talvez busque desesperadamente a certeza do lugar comum, do conhecimento enlatado e inquestionável incapaz de reconhecer o contraditório.

Na religião cristã não é diferente, os pastores que no passado, querendo voltar ao cristianismo original, ensinavam o povo a buscar a Deus e a descobri-lo, hoje ensinam que os mesmos devem apenas ser obedecidos, sem questionamento, pois se autointitulam emissários inquestionáveis do Altíssimo, e assim as bolhas de pastores e ministérios se antagonizam mas não conseguem reconhecer o contraditório. 

Existe um paradoxo aqui, a chamada Era da Incerteza é curiosamente a "era" onde as pessoas estão cheias de certezas absolutas, aonde a ideia é buscar o lugar comum, onde estamos mais certos que nunca sobre tudo e todos. Bem vindo a Moderna Idade das Trevas.


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