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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O Homem Incomodado e as Flores de Plásctico

Sabe aquela sensação de sair de uma sala de cinema pensando na vida? Alguns filmes nos levam a questionar a vida, a existência, a espiritualidade, e a nossa sociedade. E mesmo quando não concordamos com as ideias propostas, é muito bom quando somos incomodados por um filme, como diz o dito popular deixando "uma pulga atrás da orelha", e ficamos pensando em como estamos conduzindo nossas vidas e repensando os conceitos que nos norteiam.

Alguns cinéfilos chamam estes filmes de filmes "Gnosticos" porque "Gnosis" vem do grego "Γνωσις" que quer dizer "conhecimento", então seria a ideia de que alguns filmes estimulam o conhecimento, ou mesmo o auto conhecimento. O problema é que algumas destas listas perdem o foco transitando excessivamente por filmes de aspecto místico, e nem sempre fazem jus a esta ideia da "Gnosis"; mas fica a dica de que na internet encontraremos vários amantes da sétima arte que postaram em sites ou em blogs, listas de filmes que estimulam nossa percepção do mundo e de nós mesmos.

Lista a parte, creio que o cinema é muito poderoso para isto, mas alguém pode me contrapor dizendo que esta tarefa pertence aos livros, realmente é lógico que os livros cumprem melhor este papel, mas as vezes os filmes são mais eficazes para que assimilemos tais questionamentos que estimulam nosso conhecimento; tanto é assim que alguns livros deste quilate tornaram-se mais fortes quando foram adaptados para o cinema. Posso mencionar por exemplo "O Nome da Rosa" que fora inicialmente um livro escrito pelo fantástico Umberto Eco e sua adaptação para o cinema projetou imensamente tanto o livro como o autor. Ocorre que Umberto Eco é aquele tipo de homem com conhecimento absurdamente vasto, e seu romance acabou se tornando uma enciclopédia para diversos aspectos da sociedade medieval, contudo quando foi levado ao cinema, a narrativa condensada focou melhor nos pontos mais importantes e inegavelmente acabou contribuindo para que os questionamentos de Umberto Eco se tornassem mais evidentes.


Em geral este tipo de filme não tem lá muito apelo comercial, por vezes conseguem até emplacar uma bilheteria razoável como aconteceu com o "Show de Trumam" de 1998, mas infelizmente o viciante cinema enlatado norte americano, tirou do público em geral o gosto pelo cinema introspectivo; sem falar que vez por outra surgem filmes pseudo intelectuais, entediantes e falsos de conteúdo, que complicam a vida de quem vai ao cinema querendo ocupar a mente com questões existenciais.



Que me recorde agora, creio que a única película cinematográfica que realmente trouxe várias questões existenciais e ao mesmo tempo conquistou tremenda bilheteria, foi a sinistra " trilogia "Matrix"; digo sinistra porque o herói "Neo" evoca o arquétipo do "anticristo" (esta é obviamente uma opinião pessoal), mas mesmo pensando assim, é inegável que nunca se imaginou que fosse possível um filme transmitir de forma tão esplendida os pensamentos da filosóficos de Platão, e ainda assim ter sido um imenso sucesso de bilheteria. Mas mesmo os irmãos Wachowski que foram tão felizes ao produzirem "Matrix", não conseguiram repetir a formula quando adaptaram o livro "Cloud Atlas" do britânico David Mitchell. para o cinema.


Não quero desmerecer o filme "Cloud Atlas" que a propósito está na minha lista pessoal de filmes que me fizeram pensar na vida e que curti bastante, mas os irmãos Wachoski não conseguiram repetir a formula porque este filme nem de longe emplacou o mesmo sucesso de bilheteria de "Matrix".

Quero a propósito abrir um parentese sobre "Cloud Atlas"; não sei porque aqui no Brasil ele recebeu o título de "A Viagem" até porque em Portugal ele foi transliterado e chamado de "Atlas das Nuvens". Qualquer que tenha sido o motivo, parece que conseguimos, em nossa tolice tupiniquim, empobrecer a percepção que o título trás para a obra, mas ainda bem que não empobrecemos a obra em si. O filme, e mesmo o livro que o inspirou, tem um forte cunho reencarnacionista, e obviamente sendo cristão convicto, discordo de vários destes aspectos, mas é uma obra fantástica que aguça em nós a percepção de como nossas atitudes podem repercutir no futuro, até mesmo ecoando num futuro distante.

Mas voltemos a falar sobre "O Homem Incomodado", bem na verdade não falamos nada sobre ele ainda, mas em minha busca por filmes de caráter introspectivo primeiro tive o grande privilégio de assistir o filme belga "Sr Ninguém" de 2009 com uma atuação perfeita de Jared Leto e Diane Kruger, mas sobre o "Sr Ninguém" já deixei uma postagem /eradaincerteza.blogspot.com/2014/09/deus-e-o-sr-ninguem.html .

Pois bem, vasculhando comentários sobre "Sr Ninguém" na rede, me deparei com a indicação de um filme que nunca tinha ouvido falar, "O Homem Incomodado". Tratasse de um filme norueguês de 2006 cujo título em inglês foi "The Bothersome Man", e o título original foi "Den brysomme mannen", dirigido por Jens Lien e escrito por Per Schreiner.

Descobri que o filme havia conquistado vários prêmios internacionais enquanto a maioria de nós no Brasileiros, mesmo muitos daqueles que assim como eu procuram bons filmes, nem sequer tínhamos ouvido falar deste tal "Homem Incomodado". Quando finalmente consegui um exemplar do filme e pude assisti-lo, entendi que eu também estava incomodado.

A história é muito curiosa, Andreas representado pelo ator Trond Fausa Aurvåg  é o principal protagonista, ele chega numa cidade muito estranha sem saber ao certo como foi parar la, logo lhe arrumam um bom emprego e não demora para que esteja se relacionando com uma bela mulher.

Mas aquilo que parece um mundo perfeito, começa a causar incômodo na mente de Andreas, as pessoas parecem insensíveis, só conversam futilidades, não havia sabor, não havia vida, não havia cheiro, nem música, não havia emoção, era tudo vazio e ninguém queria conversar sobre coisas profundas e dilemas existenciais.

Em seu desespero Andreas tenta se matar pulando nos trilhos do metrô, mas ele não morre mesmo sendo atropelado por um trem, e esta cena nos faz especular sobre várias possibilidades a respeito do nível de existência que Andreas estava experimentando.


Então Andreas se lembra que num dos primeiros dias logo após sua chegada, ele havia conhecido um homem chamado Hugo, que dizia sentir saudades do sabor do chocolate, ele havia seguido tal homem até que o viu se trancando no porão de um prédio. Andreas vai ao encontro de tal homem e descobre que no porão deste determinado prédio havia um pequena fresta de onde vinha uma música muito linda. Ele e Hugo ficavam todos os dias, por horas ouvindo aquela linda música, mas era apenas a música, com o passar do tempo eles começam a sentir cheiros agradáveis, som de crianças brincando e todo o tipo de sensação que simplesmente não havia naquele lugar aparentemente perfeito aonde eles estavam.



Enquanto assistia ao filme, e na medida em que me dava conta da crítica que era feita a esta sociedade que cultua a beleza morta das flores de plástico, me lembrei de um fato que vivi. Parte de nossa família vive no campo e recordo que a algum tempo estive naquelas terras e comi uma salada aonde tinha aquele tomate pequenino que chamamos de tomate cereja, eles haviam sido plantados naquelas terras mesmo, e não eram perfeitos na forma nem na cor, mas incrivelmente saborosos.

Semanas depois, já na cidade, fui a uma rede de "fast foods", e na vã esperança de me alimentar de algo mais saudável pedi uma salada; foi quando me deparei com os mesmos tomatinhos, só que aqueles eram perfeitos, cor perfeita, textura perfeita, contudo não havia neles sabor algum, não tinham gosto de nada, na verdade naquela falsa salada, nada tinha sabor, tanto fazia comer o alface ou o tomate cereja, ou mesmo outra folha qualquer, tudo tinha o mesmo gosto, ou talvez fosse gosto nenhum.

Já não é de hoje que se discute o que vale mais, a forma ou o conteúdo, e infelizmente parece que o culto a forma está vencendo esta batalha e tornando a vida sem sabor.


Na sequencia do filme, Andreas e Hugo ficam tão desesperado por experimentar as sensações que vem do outro lado daquele buraco na parede, que passam a tentar quebrar aquela parede para abrir mais aquela brecha, e conforme abrem a parede as pessoas que transitavam na rua passavam a parar na calçada para tentar identificar de onde vinham aqueles sons e aqueles cheiros maravilhosos, mas isto acabou chamando a atenção das autoridades locais que prederam a Andreas e o impediram de chegar ao outro lado. Creio que neste momento o filme está evidenciando a ditadura da forma que odeia o valor do conteúdo e reprime quem tenta se libertar dos conceitos que pregam a beleza das flores de plástico.

O filme não tem um desfecho, nem sequer responde as perguntas, apenas suscita o incômodo, e particularmente senti este incômodo, acho até que devo estar feliz por estar incomodado, significa que não fui totalmente intoxicado com esta cultura aonde o ser humano está tão desesperado por viver uma vida estável e boa, que acaba abrindo mão da própria vida.

Talvez fosse também neste sentido que Cristo disse (conforme registrado no evangelho de João capitulo 12 verso 26) que muitos amam tanto a vida que acabam por perde-la. É quando as pessoas buscam tanto sua zona de conforto que acabam perdendo de vista o que realmente importa, como quando certas pessoas tem tanto medo de sofrerem desilusões amorosas que nunca se apaixonam, ou mesmo querem tanto se poupar de sofrimentos que rejeitam qualquer tipo de empatia e nunca sentem a dor do semelhante.

Luiz Fernando Veríssimo disse que "De nada adianta cercar um coração vazio ou mesmo economizar a alma.e o romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance". O pastor Martin Luther King certa vez disse que a vida só vale a pena quando encontramos o motivo pelo qual morreremos.

Mas como disse, apesar das orientações contrárias de grande homens ou do próprio Cristo, nossa sociedade cultua a forma sem se dar conta do conteúdo, então de repente ficou tudo assim, bonito mas sem vida, como um jardim de flores de plástico e se nesta hora se nos sentirmos incomodados, é porque ainda há esperança.

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