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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os Filhos Dos Thénardier

O casal Thénardier são personagens da literatura que expressam a essência do mal na percepção do genial Victor Hugo conforme encontramos em seu livro "Os Miseráveis". Talvez sejam os personagens mais execráveis de toda a literatura, lixos humanos, e o perfeito retrato de uma sociedade.

Victor Hugo era excelente em descrever pessoas, capaz de criar personagens tão verossímeis e intensos, absolutamente compatíveis com a realidade, e por isto ele criava grande empatia entre seus leitores e seus personagens, tanto é assim, que "Os Miseráveis" foi sucesso como obra literária, foi sucesso como telenovela, foi sucesso como musical (o mais assistido na Broadway em todos os tempos), foi sucesso como série para a televisão, e foi sucesso no cinema. Todavia ao descerver personagens tão verossímeis, existe o perigo perturbador e angustiante de que podemos acabar nos vendo em seus maléficos, principalmente no caso deste casal detestável, podemos acabar por ver o execrável em nós.

"Os Miseráveis" foi lançado em 1855 e seu lançamento aconteceu simultaneamente em sete capitais pelo mundo, isto tem falar que este livro vendeu mais de sete mil exemplares em um único dia, isto era algo nunca imaginado em 1855. Neste livro ele detalha a vida entrelaçada de pessoas que enfrentavam os duros dias na França dos anos 1830 quando a miséria assolava o pais e a população vivia a frustração de estar vivendo ainda sob um governo totalitário mesmo depois de ter lutando tanto para destituir a monarquia, e depois de ter vivido várias guerras ao apoiar o projeto de Napoleão.

Mas apesar do sucesso estrondoso desta obra, nem sempre os leitores conseguem perceber que o verdadeiro vilão é o Sr Thérnardier, e por não conseguir perceber isto, muitas vezes o leitor perde de vista esta perspectiva de como o mal surge e como o mal se manifesta segundo a visão de Victor Hugo.

Em linhas gerais "Os Miseráveis" fala de um presidiário chamado Jean Valjean que aproveita a liberdade condicional para fugir, ele passa a viver foragido fingindo ser outra pessoa numa outra cidade no interior próxima a Paris, e ele monta um negócio e seu negócio e prospera, acaba que Valjean se torna um homem rico, a ponto de ser eleito prefeito daquela cidade. Durante aqueles anos ele conhece uma prostituta chamada Fantine, ela havia sido funcionária dele, e estava muito doente por causa do seu estilo de vida, Valjena sofre um profundo arrependimento por te-la demitido e resolver cuidar de Fantine, descobre que aquela moça se prostituía para ter dinheiro a fim de enviar este dinheiro a um homem chamado Thénardier, este homem junto com a esposa cuidavam da filha dela de apenas 8 anos chamada Cosette, Valjean movido de intima compaixão cuida daquela moça em seus últimos dias até que ela morre, mas no seu leito de morte Jean Valjean jura para Fantine que vai buscar Cosette e vai cria-la como se fosse filha dele. Jean Valjean cumpre sua promessa e busca Cosette, mas neste meio tempo seu disfarce é revelado, então ele foge com toda sua fortuna para Paris e passa a viver escondido nos subúrbios da cidade. Durante os anos que se passam Cosette tira de Jean Valjean toda a amargura dos tempos da prisão, criar aquela menina com tanto amor muda aquele homem, mas ela nunca soube que sua mãe fora prostituta nem que seu pai era adotivo e era procurado pela polícia. Quando Cosette cresce ela se apaixona por um rapaz estudante filho de um aristocratas, chamado Márius, que também é perdidamente apaixonado por ela, e Jean Valjean percebe que chegou a hora dele perder seu único e verdadeiro tesouro.

Acontece que durante toda esta jornada deste homem que foi redimido por viver a experiencia de adotar uma garotinha e cria-la com amor, Jean Valjean é incessantemente cassado por um policial chamado Javert, este policial fora o mesmo quem acompanhou Valjean na época da prisão. O problema que em nossa mente, estamos condicionados com o arquétipo de um vilão que necessariamente é a oposição ao personagem principal, de maneira que boa parte dos leitores e dos que conhecem esta obra, imaginam que Javert é o vilão da história.

Mas esta ideia de que Javert é o vilão proposto por Victor Hugo cai por terra quando o policial comete suicídio. Tudo se dá quando houve em 1833 uma revolta dos estudantes que queriam a democracia na França, Javert estava infiltrado entre os estudantes revoltados mas seu disfarce é descoberto, e Valjean também vai para as barricadas onde os estudantes lutam por democracia a fim de salvar Márius, ele teme que o rapaz morra e sua filha adotiva fique inconsolável, e Valjean acaba que salva a vida do homem que passou a vida tentando leva-lo de volta para a prisão. Mas Javert fica tão atordoado ao perceber que o homem que ele julgava ser um cruel criminoso é tão humano que lhe salva a vida, e isto o confunde tanto que ele se mata.

Então ele não é um vilão da história, ele é apenas um homem obstinado que pensa que é a lei que vai tornar a sociedade boa, para ele se a lei for executada os males da humanidade serão sanados, pois a vida somente fazia sentido na logica fria da lei, então Javert caça Jean Valjean como quem levanta uma bandeira e acredita que vai salvar o mundo, mas ele não consegue perceber a vida na dubiedade dos sentimentos humanos, e ao salvar-lhe Jean Valjean tira dele o sentido que ele imaginava existir no cumprimento da lei, e por isto ele fica tão perdido e comete suicídio, ele havia perdido seu referencial  ao perceber que a lógica da lei não retrata a realidade dos fatos da vida.

Então neste breve e resumidíssimo "spoiler" fica evidente que Victor Hugo trabalha seu vilão num outro contesto. O vilão de Victor Hugo não é um personagem principal, mas ele age continuamente, interferindo na vida daquelas pessoas de forma cruel.
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O Vilão é o casal Thénardier, o mesmo que criava Cosette enquanto Fantine tentava ganhar dinheiro.
O Sr Thénardier surge na história como dono de uma hospedagem, aparentemente homem trabalhador, casado, pai de cinco filhos. Mas Victor Hugo não apenas quebra os esteriótipos, ele acima de tudo tenta mostrar onde nasce o verdadeiro mal no ser humano pois Thénardier se revela ser um homem disposto a fazer todo o mal possível ao seu semelhante, desde que possa tirar dele algum proveito.

Thénardier rouba cadáveres de soldados tombados nas batalhas, ele explora a prostituição em sua taberna, ele rouba os seus clientes que ficam embriagados em sua taberna, ele tira proveiro de trabalho infantil quando obrigava Cosette a trabalhar sob terríveis maus tratos, ele explora Fantine e lhe causa a morte, ele exige dinheiro para que Jean Valjean leve Cosette embora, então podemos dizer ele vendeu a criança, seria o mesmo que lucrar com tráfico de pessoas, depois já em Paris ele tenta matar e roubar Jean Valjean sabendo que ele é um foragido e tem muito dinheiro em casa, e só não conseguiu por que sua filha mais velha chamada Eponine alerta Valjean (a respeito disso falaremos mais adiante), ele extorque Mários para dizer o paradeiro do Valjean, pois quando Márius casa com Cosette, Valjean decide desaparecer para não constranger a filha, além disso Thénardier arrasta para os esgotos de Paris os corpos dos combatentes alvejados naquela revolta de 1833, mesmo aqueles que não estavam mortos mas apenas feridos, ele termina de mata-los para poder roubar todos os seus pertences; por fim ele e sua outra filha Azelma pegam seu dinheiro e vão embora para os Estados Unidos a fim de ganhar dinheiro com tráfico de escravos.

Interessante ressaltar que apesar de ser tão amoral e tão ladrão, Victor Hugo registra que num dado momento, o hotel dos Thénardier faliu, e mesmo depois de roubar tanto os hospedes ainda assim ele foi a falência, e penso que esta é a forma como Victor Hugo reafirma que os que roubam nada tem.

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A maldade do Senhor Thénardier pode ser mensurada no caso da Fantine, porque o que este homem fez com ela é de uma crueldade absurda e sem limites. Fantine era mãe solteira, e como não tinha como trabalhar e cuidar de sua filha ao mesmo tempo, ela deixa sua filha Cosette quanto esta tinha apenas 3 anos para que Thénardier e a esposa cuidem enquanto ela tentava trabalho, Fantine planejava juntar algum dinheiro e poder voltar para buscar a filha. Mas o casal Thénardier submete Cosette a constantes maus tratos e explora a menina colocando-a para trabalhar como já o dissemos, mas enquanto Cosette é maltratada e explorada o casal Thénardier fica a enviar constantes cartas para Fantine dizendo que a filha precisa ir ao médico, precisa de roupas novas, precisa de sapatos novos, etc etc, de maneira que Fantine envia todo o dinheiro que tem, e quando Fantine perde o emprego, as cartas não cessam, Fantine entra em desespero, e para poder continuar atendendo aos constantes pedidos por dinheiro dos Thénardier, ela passa a se prostituir, a todo tempo os Thénardier pedem mais e mais dinheiro, e Fantine fica tão atordoada que ela raspa a cabeça e vende os cabelos para um homem que fazia perucas, depois ela chega a vender os dentes de traz da boca para um homem que fazia dentaduras (na época não haviam protéticos e as próteses dentárias eram feitas com dentes de verdade). É como se Victor Hugo tentasse demonstrar que ela estava se destruindo, vendendo os pedaços de seu próprio corpo, imaginando que aquele dinheiro seria usado para cuidar de sua filha, enquanto na verdade a garota sofria maus tratos todos os dias.

Como alguém pode ser tão cruel? Submeter uma moça sozinha a tamanho sofrimento a ponto dela morrer, tudo para poder arrecadar alguns trocados. Na verdade a ideia de Victor Hugo é revelar o mal como sendo a desumanização do indivíduo. Thénardier vivia aqueles dias difíceis e buscava desesperadamente uma condição digna de vida para ele e para a família, e neste processo ele se desumaniza, ele perde completamente a capacidade de sentir empatia, e a dor do outro ser humano não lhe incomodava mais.

Interessante perceber que muitas pessoas que leram "Os Miseráveis" se perguntam como pode Fantine ter confiado sua filha aos cuidados de gente tão asquerosa? Mas este detalhe, ou melhor, a compreensão deste detalhe, também revela algo fantástico sobre como Victor Hugo pensava, pois se olharmos o texto do livro atentamente (e digo isto porque tal detalhe não pode ser percebido quando tal obra foi apresentada noutras mídias) perceberemos que este mesmo Thénardier fora herói de guerra, ele havia salvado a vida de outro soldado no campo de batalha, e outro detalhe é quando o texto nos fala que a filha mais velha dos Thénardier chamada Eponine quando pequena era muito amada e criada cheia de mimos. Particularmente penso que Victor Hugo está tentando mostrar que aquele homem mal, cruel ao extremo, nem sempre foi assim. Isto explicaria Fantine ter deixado sua pequena filha aos cuidados daquele casal, porque viu a princípio naquele homem um herói de guerra que era um bom pai.

Então Thénardier lutando pela condição favorável para si e sua família começa a se desumanizar, ele começa a admitir explorar o semelhante para abstrair dele algum ganho, e isto evolui até que ele perdeu completamente a empatia por outros seres humanos nem mesmo pelos seus filhos, ele se embruteceu, perdeu sua humanidade, tornou-se um sociopata capaz de massacrar tanto a pobre Fantine que lhe causou a própria morte, ele perdeu a capacidade de sentir a dor do outro, e esta é a verdadeira face do mal para Victor Hugo.

Penso que Victor Hugo esta a nos falar sobre como a sociedade tem embrutecido os homens, que mesmo pessoas boas tem se tornado monstros doentes, perdendo completamente os valores de sua humanidade, buscando unicamente lucros financeiros. Somos tão envolvidos na corrida de riqueza e poder, que somos tragados por este conceito pernicioso onde nossos amigos são aqueles que nos podem dar alguma vantagem, e nossos inimigos são as pessoas que precisamos massacrar para podermos tirar algum proveito de seus cadáveres.


Gavroche



Mas a genialidade de Victor Hugo nos leva a outro patamar ainda além quando pensamos nos filhos deste sociopata que se tornou o senhor Thénardier.



Thénardier tem cinco filhos, dois são bem pequenos e seus nomes não aparecem, mas o menino mais velho surge na história quando ocorre a revolta dos estudantes, ele se chama Gavroche, é um adolescente no início da adolescência que comete pequenos delitos e lidera outros meninos de rua. Importante lembrar que o senhor Thénardier havia falido sua pousada então ele vivia em Paris em difícil situação financeira, e como havia se tornado insensível ao sofrimento alheio, ele vive de furtos e roubos junto com outros marginais, Gavroche aprende os hábitos do pai e se torna um delinquente juvenil.

Gavroche é esperto, rápido, inteligente, e não demora para que esteja liderando outros meninos de rua, mas de repente Gavroche começa a mudar de atitude, ele passou a frequentar um bar onde se reuniam jovens estudantes idealistas que conversavam sobre não deixar a república morrer, e sobre uma sociedade mais justa e coisas do gênero. Muitos dizem que ele é o personagem mais perfeito e mais apaixonante da obra de Victor Hugo, e realmente a descrição feita sobre ele emociona, pois quando aquele delinquente se depara com aqueles jovens idealistas o coração dele passa a arder com os mesmo ideais daqueles estudantes que eram quase todos filhos da aristocracia francesa.

Finalmente quando explode a revolta de 1833 Gavroche estava lá lutando com aqueles estudantes pela volta da república. Mas chega o momento em que a revolta se mostra fracassada, a população de Paris não se envolve na luta, e os estudantes não tem o apoio necessário para derrubar o governo, lhes faltam homens, armas e munição, e a derrota e eminente, Gavroche então vai se esgueirando entre os soldados mortos para pegar deles as cápsulas não deflagradas levando munição para os estudantes que continuam por trás das barricadas resistido e atirando nos soldados. Mas numa destas idas e vindas de Gavroche para buscar munição entre os corpos, ele acaba sendo alvejado e morre. Seu pai, incapaz de sentir agora qualquer empatia  não sente em nada a morte do filho, apenas como dissemos, fica saqueando os pertences dos mortos e feridos.

Gavroche é na verdade a mensagem de esperança de Victor Hugo, filho de um homem incapaz de sentir empatia pelo semelhante, ele começa como delinquente pois aprendeu com o pai a vida desonesta, mas depois ele morre por um ideal de uma sociedade justa. É a esperança de Victor Hugo de que os filhos sejam capazes romper com esta espiral de destruição na qual estamos envolvidos, sendo capazes de não repetir os mesmos erros dos pais, rompendo com esta doença social que torna homens em monstros.

Eponine

A filha mais velha dos Thénardier se chama Eponine, e penso eu que ela ainda repercute mais alto esta esperança de Vitor Hugo, de que os filhos dos homens tornados em monstros, possar voltar a ser homens.

Eponine assim como Gavroche vive nas ruas, ensinada pelo pai a tirar proveito das pessoas e a praticar roubos e furtos, ela também surge como uma delinquente, mais ela é mais velha que Gavroche, e tem uma malandragem e uma esperteza advinda de uma experiência maior nas ruas.

Assim como Gavroche ela se envolve com os estudantes revolucionários, mas ela na verdade não está focada dos ideais republicanos pelos quais lutam aqueles jovens, a motivação dela é outra, ela está apaixonada por um daqueles jovens chamado Márius, mas Márius não percebe os sentimentos dela, e para piorar Márius havia visto a linda Cosette nas ruas de Paris e pede para Eponine descobrir onde aquela moça morava, obviamente Valjean vivia escondido e por isso não foi fácil achar o paradeiro da moça, ainda pior que ela lembrava de Cosette  quando pequena trabalhando para seus pais, mesmo assim ela consegue o endereço e mostra para Márius onde vivia Valjean e a filha adotiva. Mas ao descobrir o paradeiro de Valjean ela expõe o rico foragido para seu pai crápula, de maneira que Thénardier junta outros homens para atacar a casa onde vivia escondido Jean Valjean, a ideia era mata-lo e roubar sua fortuna.

Acho este o momento mais especial de toda a obra de Victor Hugo, pois Eponine tem a oportunidade de se ver livre de Cosette pelas mãos de seu pai assassino e isto deixaria o caminho dela livre para o coração de Mários, contudo mesmo tendo um pai monstro, ela estava amando, e mesmo não tendo seu amor correspondido, ainda assim ela tinha aprendido o que era amar, então ela salva Cossette mesmo sendo sua adversária pelo coração de Márius, alertando Valjean, isto suscita a ira de Thénardier contra a filha, e Valjean foge com Cosette.

Novamente Victor Hugo revela a esperança de que mesmo os filhos de pessoas que tenham desaprendido a amar, ainda assim este filhos consigam amar, mesmo seus adversários como ensinou o Cristo.

Eponine também morre nas barricadas, durante a revolta ela salva a vida de Márius e toma um tiro no lugar dele, ela morre nos braços de Márius e lhe pede apenas um beijo. Parece triste mas na verdade revela o amor na sua face mais extraordinária, ser capaz de querer o bem de alguém independente de ter ou não aquele alguém.

Gavroche e Eponine morrem, mas morrem pela vida, rejeitam o que haviam aprendido de seus pais monstruosos, preferem morrer pela vida do que viver pela morte.

Thénardier talvez seja o símbolo de Victor Hugo para o mundo, talvez ele represente esta sociedade que massacra e oprime sem consciência e sem pudor, e se for assim, os dois filhos dos Thénardier podem representar todos nós que temos a oportunidade de rejeitar estas ideias nas quais estamos sendo inseridos. Os filhos dos Thénardier talvez sejamos nós quando ao contrário do que estamos sendo ensinados pelo mundo, insistimos em continuar sendo humanos.





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