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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Redenção de Narciso


A história de Narciso era uma das mais populares na Grécia antiga, a prova disso é o fato de que vários manuscritos contendo esta narrativa sobreviveram até hoje.

Nos tempos modernos Narciso também se popularizou graças aos estudos sobre a psique humana que veem na história de Narciso um prato cheio, aonde a narrativa nos remete a capacidade destrutiva da vaidade excessiva. Surge então o conceito do "Narcisista" como a pessoa apaixonada pela própria imagem.

Na verdade o conceito moderno sobre Narcisismo é mais popular que o próprio mito Grego que originou o conceito, todavia o público em geral desconhece que Narciso é na verdade um herói e que sua história tem várias versões.

Temos que entender que tais contos eram reproduzidos por inúmeros autores, e estas diferentes verões são também escritas em diferentes contextos e diferentes períodos da história. De maneira que a mesma história pode ganhar várias nuances e vários conceitos diferentes.

Todas as versões descrevem Narciso como um herói grego que viveu na região de "Téspia".

A versão mais conhecida é encontrada nos manuscritos de Ovídio, que era um Romano nascido por volta de quarenta anos antes de Cristo.

Nesta versão Narciso era dono de uma beleza inigualável e desprezou uma ninfa de nome "Eco", esta por sua vez morreu de desgosto. Suas amigas clamaram aos deuses para vingar sua amiga, e a deusa de nome "Némesis" condenou o rapaz a apaixonar-se pelo reflexo de sua imagem..
Assim Narciso morre imóvel ininterruptamente contemplando sua imagem refletida num lago.
Ovídio chega a dizer que mesmo morto, já no "Hades" Narciso continua por toda a eternidade buscando seu próprio reflexo, como sua condenação.

Todavia existe uma outra versão deste conto que foi escrita alguns anos depois desta, pelo geógrafo grego de nome Pausânias.
Esta versão de Pausânias surge de forma despretensiosa, pois ele na verdade escreveu por volta do ano 150 depois de Cristo, um "Guia para Grécia", e conforme descreve os locais menciona seus heróis e as histórias que envolvem as regiões mencionadas.
Vários estudiosos dizem até que esta versão, mesmo tendo sido escrita depois da versão de Ovídio, é mais próxima das narrativas originais da história, primeiro pelo fato de que Pausânias era grego, e segundo pela forma despretensiosa com que ele descreveu o mito.
O fato é que nesta breve narrativa temos algumas nuances muito interessantes, ou talvez informações omitidas pela narrativa de Ovídio.
Pausânias descreve Narciso como um homem muito valoroso, inteligente e muito bonito, ele tinha uma irmã gêmea, ela era idêntica a ele, tinha também os mesmos gostos, até a forma de se vestir era igual, e Narciso acaba se apaixonando por sua irmã pois era seu reflexo, mas a irmã gêmea de Narciso morreu, e ele em desespero passa a procurar sua imagem refletida, e acaba morrendo no lago contemplando a si mesmo.

A versão de Pausânias nos faz pensar um pouco num Narciso diferente, muito além da vaidade exagerada e destrutiva (quanto a isto não restam dúvidas), mas Pausânias nos remete a questão da busca pelo auto conhecimento, Narciso é alguém que busca sua imagem como identificação.
É absolutamente natural que busquemos pessoas com nossa imagem, no sentido de que buscamos pessoas que guardem semelhança conosco.
Este comportamento surge logo no início da adolescência, tanto é assim que comumente vemos adolescentes como que em bandos, as chamadas "tribos" aonde eles procuram pessoas com as quais se identifiquem. Convêm lembrar que a própria palavra "amigo" vem de "imago" que quer dizer imagem.

Narciso busca alguém que seja sua imagem, e Pausânias enfatiza isto mencionando que ele se apaixona por sua irmã gêmea que não apenas tinha a mesma aparência com também tinha as mesmas opniões, gostos e até a forma de se vestir era igual. Ela era um semelhante, alguém com quem ele se identificava e que fazia com que ele pudesse se ver, no mais puro sentido do auto-conhecimento.

Importante também lembrar que o conceito de "Alma Gêmea" descrito por Platão séculos antes de Pausânias em seu livro "O Banquete" tem a ver com a ideia de semelhante, por isto Narciso se apaixona por sua irmã Gêmea. Não se tratava de uma relação hedionda, mas era uma referência ao conceito de "Alma Gêmea". Curiosamente o dito popular diz que os opostos se atraem, mas isto é totalmente contrário ao conceito grego de alma gêmea, pois para os Gregos este amor arrebatador surge quando nos vemos em alguém. Quando nos vemos em alguém isto nos ajuda a entendermos quem somos, por isto é alma gémea, porque é alguém semelhante, nossa imagem, e ai sim estaremos completos.
E tudo isto é demonstrado com maestria na história de Narciso.
Uma curiosidade em relação a Pausânias com o livro de Platão chamado "O Banquete" que é o livro de Platão dedicado ao amor, é que um dos personagens do livro se chama Pausânias.

Mas voltemos a Narciso, podemos perceber que foi por isto também que ele rejeitava outras mulheres e as ninfas que o desejavam como na história narrada por  Ovídio, pois queria somente aquela que era sua imagem, somente ela fazia com que ele se entendesse.

Creio que tanto a narrativa de Ovídio como a de Pausânias descrevem que o exagero desta busca pelo auto-conhecimento é destrutivo, mas penso ser um erro ver em Narciso a vaidade tola e desmedida dos tempos modernos. O homem moderno muitas vezes é sim um completo todo, afogado em vaidade e mediocridade narcisista, mas não no conceito do Narciso da história Grega. Este estava mais para alguém que precisava de auto-conhecimento e se destruiu numa busca desenfreada por contemplar a si mesmo.

Penso que a descrição de Pausânias nos ajuda a entender que o amor pode ser sim forma de auto-conhecimento quando ao invés de buscar alguém que preencha nossos vazios, procuramos alguém que nos faça ver quem realmente somos.
Mas quando Narciso perde sua irmã amada, ele fica desesperado, necessitando ver seu reflexo e acaba se destruindo. Penso que Pausânias está nos dizendo que a ausência deste amor tira de nós o eixo de equilíbrio e nos lança numa busca destrutiva pela contemplação de nossa própria imagem; a ausência de um amor que nos faz ver quem somos nos lança numa busca desesperada por entender quem somos.


Quando Ovídio afirma que Narciso permanece no "Hades" tentando ver seu reflexo, creio que é uma metáfora do inferno de quem busca este auto-conhecimento e não o encontra.



Uma curiosidade é que na mesma narrativa de Narciso, Pausânias também conta que "Hades" usou a flor de Narciso para atrair Perséfones.
A lenda conta que Hades, irmão de Zeus, que governa o inferno, e seu nome se confunde com o próprio inferno no conceito grego, desejava muito uma mulher belíssima de nome Perséfones.
Pausânias contou que Hades usou uma flor que exalava Narciso para atrair e raptar Perséfones que se tornou esposa e prisioneira no inferno.
É também uma metáfora poderosa de como o mal nos rapta por nossa vaidade. Contudo mais uma vez, não se trata de vaidade tola, e sim da vaidade do auto-conhecimento, mergulhar em si mesmo que nos arrasta para um abismo.

Sendo assim, a questão levantada pelo conto de Narciso vai muito além da vaidade toda e fútil da beleza vazia das modernas flores de plastico, mas é um assunto bastante complexo sobre a necessidade que temos de auto-conhecimento. Na Bíblia inclusive este assunto é abordado pelo Apostolo Paulo na sua Primeira Carta aos Corintius quando ele diz: "Examine-se o homem a si mesmo".
Todavia esta busca pelo auto-conhecimento é tão importante mas requer um equilíbrio muito ténue pois isto em uma dose mais forte lança o indivíduo num inferno da auto contemplação.
Talvez o segredo para o auto-conhecimento equilibrado seja realmente o amor que nos faça ver quem realmente somos. Por isto que na narrativa de Pausânias, Narciso antes de perder sua irmã (Alma) gêmea, era um homem pleno.




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